MINHA ANALISE SOBRE TERRAS QUILOMBOLAS NO ESTADO DO AMAPÁ SEGUNDO HELANE




Muitos me conhecem cantando rap, ou como interprete de samba e vivendo a experiência de ser quilombola no contexto amazônico. É importante colocar que ser quilombola não é ser todos iguais. Os quilombos são diferente, apresentam características culturais, sociais, políticas e ambientais do lugar onde se localiza, além disso, as pessoas também experimentam jeitos únicos de viver isso. No Amapá tem quilombos que preservam muito de sua cultura negra ancestral, vivenciam o marabaixo, por exemplo, manifestação cultural afro-brasileira que só acontece no Amapá; tem quilombos que apresentam fortes relações com a cultura indígena, pois dela se fizeram irmãos; tem comunidades evangélicas que falar de negritude é extremamente complexo e outras que mesmo evangélicas, produzem o marabaixo. Todas experimentam o ser quilombola no contexto amazônico e por isso, partilha a identidade de comunidades ribeirinhas, aquelas que sobrevivem do rio e da forte relação com a floresta e dos produtos florestais como o peixe e o açaí, por isso são bem diferentes daqui. Mas todas trazem a matriz africana, trazem a ancestralidade africana como marca condicionante de suas vidas e portanto, da sua luta política contra o racismo, pelos direitos fundamentais como educação e saúde e a maior delas, pelo território, pelo direito de viver em suas terras e de produzir nelas.

Minha análise sobre os conflitos em torno do processo de regularização de terras quilombolas de algumas comunidades interioranas negras do Amapá. Durante minha experiência na Secretaria Extraordinária de Políticas para o afro descendente, no período de 2011 a 2015, consegui acompanhar melhor 83 das 124 comunidades, (vale ressaltar que os números reais de quilombos no Estado são desencontrados), fazendo o registro historiográfico das comunidades. Neste acompanhamento, dentre os problemas que identifiquei, destaca-se a falta de conhecimento dos direitos e das políticas públicas de ações afirmativas para os quilombos e sobre o processo de regularização fundiária por meio do decreto 4.887/2003, que considera os remanescentes das comunidades dos quilombos, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações especificas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

Durante essa experiência, vi uma figura comum em todos os quilombos, que chamo de afro-conveniente, que é aquela pessoa que transita no movimento negro por conveniência e atrapalha muito mais que ajuda. Também descobrir a importância da comunicação alternativa através do rádio e outros meios. Então   apresentei o programa de rádio Tambores no Meio do Mundo para preservar, disponibilizar e divulgar os dados dos diários de viagens, relatórios e documentos que foi acumulado nesse período, assim como deu visibilidade para a luta quilombola, falando sobre a regularização dos territórios e suas dificuldades. Eu me digo quilombola pelo fato de meu pai ter o “umbigo plantado em terras quilombolas” dessa forma sou descendente do Criaú, e convivo, não somente como gestor na SEAFRO, mas como negro quilombola que sabe o valor que a terra tem”.

Segundos relatórios do INCRA, foram identificadas 138 comunidades remanescentes de quilombolas no Estado do Amapá, destas, 40 já tem a certidão de auto reconhecimento emitida pela Fundação Cultural Palmares – FCP e somente 04 comunidades tiveram seus títulos emitidos: Curiaú, Mel da Pedreira e Conceição do Macacoari, São Raimundo do Privativa, (conforme o período de analise), todas localizadas no município de Macapá. Os relatórios técnicos de identificação e delimitação - RTID das comunidades do Rosa já foi publicado e está aguardando o cumprimento da fase de contestação. Outras comunidades contam RTID parcialmente elaborados: Ambé, São Pedro dos Bois, São José do Mata Fome, Cinco Chagas do Matapi, Lagoa dos Índios, Cunani, Engenho do Matapi e Ilha Redonda.

Oficialmente, os negros começaram a ocupar a nossa região por volta do século XVIII vindos como escravizados de famílias provenientes do Rio de janeiro, Pernambuco, Bahia e Maranhão. Teve também o caso das famílias de Mazagão na África que vieram financiadas pelo governo português e fundaram a Vila de Mazagão, hoje é um município com forte presença negra. E ainda, vieram negros para a construção da Fortaleza de São José de Macapá que empregou mão de obra escrava negra e indígenas, basicamente para o transporte de pedras para a construção da fortaleza.
        
No Amapá, a formação dos quilombos se deu pela união de fugitivos de Macapá, Mazagão, Guiana Francesa e baixo Amazonas, que criaram a rota quilombola surgida dos aquilombamentos do Araguari, um imenso território de remanescente ao longo de seus afluentes, Rio Matapí e Pedreira, onde ainda é presente grande parte dos quilombos no Amapá. Da relação entre índios e negros, formou-se as comunidades da chamada “Lagoa dos Índios”. Hoje, essa comunidade ainda espera pela titulação já solicitada e é assim para quase todas as comunidades remanescentes de quilombos: falta a presença do estado com políticas de saúde e educação. Por isso, algumas comunidades deixaram de existir e somente os cemitérios são provas de sua existência; como é o caso da comunidade de Mangabeira, que por falta dessas políticas, as pessoas tiveram que se deslocar para os centros urbanos e hoje o local serve apenas como terreno de fim de semana. Essa comunidade não é certificada, mas nos serve como referencial, pois o processo de certificação esbarra numa burocracia tão grande, que muitos não conseguem esperar e acabam por abandonar seus territórios em busca de uma vida melhor na cidade.

Acompanhei mais de perto os processos de São José da Cachoeira, Santo Antônio da Cachoeira do Rio Jari e Comunidade de Taperera, no médio Muriacá. Todas na região sul do estado. Através da SEAFRO, ajudei juntamente com um grupo de técnicos: Cabral, Gabriel Penha, Rivanda Lina na realização de reuniões comunitárias para tratar sobre as políticas quilombolas como o auto reconhecimento e sobre a lei 10.639/03 nas escolas. Destas comunidades, duas realizaram os encaminhamentos do processo de titulação, conseguindo certificação pela Fundação Palmares em 2013.

Mas como é a situação das comunidades quilombolas no Amapá? Para ilustrar um pouco, vou falar só sobre a situação da comunidade São José da Cachoeira, situada também no sul do Estado em uma Reserva Extrativista, porque mostra bem como erram as coisas por lá. Essa comunidade tem uns 70 anos, sua primeira moradora, a senhora Raimunda Pinto de Azevedo, chegou no lugar junto de seus filhos no período da extração de seringa e dos soldados da borracha. Dona Raimunda viveu até os seus 109 anos. A comunidade comporta 12 habitações de construção em madeira, onde moram cerca de 80 pessoas. Devido as enchentes do Rio Jarí que chega a subir até 5 metros acima do nível do rio e 3 metros acima do chão, as casas não podem ser construídas de alvenarias e precisam ser grandes palafitas. Não existe saneamento básico, água tratada e energia elétrica. A comunidade mesmo que custeia o combustível para o gerador de energia que funciona poucas horas por dia. Essa comunidade foi ameaçada pela construção de uma represa no Rio Jarí: Os peixes se afugentavam, dificultando a pesca para a alimentação local; o desmatamento atingiu os açaizais. Em alternativa, os moradores procuram emprego nas empresas locais como a SETE e SOLUÇÕES, que contratam os moradores da comunidade com carga horaria de 12 horas dia e 72 horas semanal, pagando o valor de 550 a 600 reais ao mês, sem horas extras ou qualquer outro tipo de benefício trabalhista.
        
Então, se tratando de políticas públicas, grande parte das comunidade quilombolas do estado não apresentam saneamento básico, a água é condicionada em toneis, apresentam alto índice de doenças como hepatite e problemas estomacais, além do alcoolismo, principalmente entre os mais velhos. As escolas, quando existentes, são com precárias condições e funcionam somente com o ensino fundamental I. Nessas comunidades são facilmente encontrados sítios arqueológicos com peças brotando da terra, mas por falta de atenção do estado, os locais são constantemente saqueados. O Programa Brasil Quilombola, criado em 2004 abrange um conjunto de ações integradas entre diversos órgãos governamentais coordenadas pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (Seppir), a fim de garantir o acesso à terra, relacionada a identidade étnica, dignidade social e preservação do patrimônio cultural brasileiro. No entanto, existe pouco conhecimento sobre essa política e as comunidade quase não conseguem acessá-la.

Quando se refere a questão fundiária, soma-se aos antigos problemas, a questão do decreto 8.713 de 2016 referente a Lei n° 10.304 de 2001, que transfere ao domínio do Estado do Amapá as terras pertencentes à união. No processo de transferência, o estado argumenta que não constava no decreto, a presença das comunidades quilombolas, somente as unidades de conservação, as terras indígenas, áreas de proteção, unidades de conservação. Então está sendo um grande problema porque parte das terras da união são ocupadas há anos por comunidades negras rurais.

Soma-se a essa problemática, a questão da Lei nº 11.952/2009, que cria o Programa Terra Legal, um marco para a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União no âmbito da Amazônia legal. O seu artigo 5º indica que pode ser beneficiada pela regularização fundiária a pessoa que não é proprietário de imóvel rural em qualquer parte do território nacional; pratica cultura efetiva e comprove o exercício de ocupação e exploração direta, mansa e pacífica, por si ou seu antecessores, anterior a 1º de dezembro de 2004. Na prática, essas prerrogativas são facilmente burladas, pois sem estrutura para realizar uma fiscalização e sem dialogar com as demais políticas do INCRA, como a que regulariza as terras quilombolas, a maioria dos pequenos lotes são juntados pela grilagem e muitos desses, em áreas quilombolas ainda não delimitadas oficialmente.

No geral, no Estado do Amapá os técnicos de topografia/Georreferenciamento que integram o sistema de monitoramento SINGEF são responsáveis por estas terras devolutas. Com posse destas informações, grupos de empresários e políticos reivindicam e ganham a titulação de posse destas terras junto ao INCRA por meio das facilidades do Programa Terra Legal. Em muitos casos, essas terras estão em território quilombola, iniciando assim, grande parte dos conflitos fundiários em território quilombola. Por outro lado, os processos de titulação das terras quilombolas andam em passos lentos no mesmo órgão, principalmente na fase contestatória e de desapropriação, onde as comunidades devem se submeter a um longo e cansativo processo de 26 atos, que se inicia com a entrada da certificação emitida pela fundação palmares junto ao INCRA e, finalmente esperar pela titulação. Em 28 anos de políticas afirmativas, somente 4 comunidades conseguiram essa titulação definitiva. O quilombo do Curiaú, ou Criaú, foi a primeira delas e isso por conta de decreto.

Um fator que colabora neste processo é a própria falta de compreensão da equipe técnica do INCRA sobre os aspectos da estruturação da política de regulação fundiária, como o conceito de territorialidade por exemplo, território étnico, identidade. Assim, o racismo institucional a que são submetidas essas comunidades por parte das instituições públicas; a morosidade e burocracia que envolve a política de regularização fundiária quilombola por outro lado e por outro, a facilidade para aquisição de terras devolutas por terceiros, que para muitos é como são tratadas as terras quilombolas; a falta de comunicação entre os órgãos envolvidos nos processos de regularização e as comunidades quilombolas; vem engrossando o caldo dessa problemática em torno do direito ao território e demais direitos das comunidades tradicionais de matriz africana. De fato, de um lado, o próprio INCRA admite que ainda não está familiarizado com a política; por outro, o próprio quilombola que delega os seus interesses a terceiros, aos afros convenientes.   

Outro fator do conflito está no título coletivo, pois, para a maioria dos quilombolas, a herança da terra passada de geração a geração, sempre foi um domínio familiar, esse título coletivo, apresentado como uso comum a todos da comunidade é causador da discórdia e brigas entre familiares. O título de domínio coletivo tem provocado nas comunidades quilombolas do estado grande tensões entre os próprios familiares. Essa questão do processo de regularização fundiária parece colocada de forma proposital e já ouvi comentários dizendo que “esses pretos só fazem brigar e tomar gengibirra”. Para mim, não deveria ter essa prerrogativa, tendo em vista que se for pela preservação do território enquanto comunidade, a cultura das matrizes africanas tem a coletividade como referência, identificada nas mais diversas formas de manifestação cultural e no cotidiano destes grupos.

Então é isso, espero que tenho colaborado, agradeço a professora Helane pela ajuda da análise. Obrigada a todxs. 



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