Retomada do julgamento sobre titulação de territórios: uma ameaça aos direitos quilombolas
Terça-feira,
1 de agosto de 2017
Retomada do julgamento sobre titulação de territórios: uma ameaça aos direitos quilombolas
Foto:
Fernanda Castro/GEPR
“Se não fizermos nada vamos acabar na senzala novamente”.
Makota
Kidoiale – Quilombo Manzo (Belo Horizonte)
Essa
frase de Makota Kidoiale expressa, de algum modo, a forma através
pela qual não apenas sequestraram nossa democracia mas, como também
estão reduzindo, confiscando ou ignorando direitos duramente
conquistados por meio de históricas lutas sociais, tais como os
trabalhistas, agora, e, não havendo as devidas resistências, também
os previdenciários.
Os
quilombolas, por exemplo, passam por um momento de grande tensão e
ameaça de perda de garantias, uma legislação que, nos últimos 14
anos, ainda não tornou mais célere a titulação dos territórios,
tal como previsto na Constituição há quase 30 anos atrás. Para
compreender o que está em risco, é preciso relembrar como foi a
conquista quilombola ao território.
A
introdução na Constituição de 1988 do direito quilombola ao
território, através do art. 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT), pode ser considerada como uma
das ações na história do Brasil com maior potencial de justiça,
democratização do espaço público e reconhecimento dos quilombolas
como sujeitos de direitos. Representava, por outro lado, também o
reconhecimento parcial de longo histórico de opressão, de uma
“democracia racial” nunca efetivamente realizada e de um profundo
racismo estrutural permanentemente negado, dentro de um imaginário
de nação harmônica, cordial e tolerante.
O
Decreto
4.887/2003, que regulamenta o art. 68 do ADCT, em substituição
ao anterior Decreto 3.912/2001, está sub judice, devido à Ação
Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) nº 3.239 de 2004, ajuizada
pelo Partido da Frente Liberal (PFL), hoje denominado Democratas
(DEM), buscando obter a declaração de inconstitucionalidade deste.
Em
18 de abril de 2012 foi iniciado o julgamento, tendo sido proferido o
voto do ministro Relator, Cezar Peluso, acatando todos os pedidos,
ainda que modulando os efeitos da declaração de
inconstitucionalidade. Sem entrar numa análise detalhada do teor do
referido voto, pode-se afirmar que primou pela ideia de um “discurso
jurídico colonizado pela noção de segurança jurídica, voltado
para a repetição do passado no presente e pouco adequado às
funções jurídico-constitucionais de transformação e construção
de um futuro livre, justo e solidário” (Camerini, 2012: 178) .
Fundou-se
numa concepção que mantém um regime jurídico-civilista da
propriedade, fazendo vistas grossas ao que se passa no real dos
grupos quilombolas com suas formas de criar, fazer e viver, também,
reconhecidas na CF/88 no art. 216. Um discurso tecnicista e
eurocentrado, ignorando a realidade social e, em especial, a
histórica usurpação de territórios negros no país.
No
mesmo dia, a Ministra Rosa Weber pediu vistas, devolvendo o processo
em 25 de março de 2015, manifestando-se contra a referida ação.
Dentre os inúmeros argumentos proferidos, é importante destacar:
“É
a própria Constituição, portanto, o nascedouro do título, ao
outorgar, aos remanescentes de quilombos, a propriedade das terras
por eles ocupadas. Constatada a situação de fato – ocupação
tradicional das terras por remanescentes dos quilombos –, a Lei
Maior do país confere-lhes o título de propriedade. E o faz não só
em proteção ao direito fundamental à moradia, mas à própria
dignidade humana, em face da íntima relação entre a identidade
coletiva das populações tradicionais e o território por elas
ocupado. A injustiça que o art. 68 do ADCT visa a coibir não se
restringe à “terra que se perde, pois a identidade coletiva também
periga sucumbir” (Brasil, STF, Rosa Weber, 18/03/2015).
Ou
seja, reconhece a permanência no território quilombola não apenas
como direito à moradia, mas também à dignidade humana e ao risco
de – não tendo esse direito garantido, assegurado e reconhecido –
perderem sua identidade coletiva.
Novamente,
o processo foi adiado por outro pedido de vista, desta vez pelo Min.
Dias Toffoli, que o devolveu em junho de 2015, mas somente agora
finalmente foi liberado para julgamento, marcado para o próximo dia
16 de agosto. Este longo período sem tramitação, ao contrário de
fortalecer a política quilombola e mesmo as garantias de
aprofundamento e consolidação de direitos humanos, é,
paradoxalmente, muito mais desfavorável à situação dos mesmos do
que às vésperas da “Constituição Cidadã” há três décadas
atrás.
Em
primeiro lugar, porque houve, nos últimos 4 anos, um fortalecimento
da pauta e agenda conservadoras, não somente com a aprovação e/ou
tramitação de projetos voltados para o interesse dos empresários e
do capital, num franco concerto entre o Governo Federal e o Congresso
Nacional, mas também por conta de uma alteração de conduta dos
Ministérios Públicos e do Judiciário, no sentido de uma
criminalização de movimentos sociais e de uma visão de baixa
intensidade de direitos humanos. Pode-se afirmar que está se
assistindo a uma contrarrevolução jurídica, de cunho marcadamente
conservador.
Em
segundo lugar, porque o atual Executivo Federal, que até então
defendia os direitos quilombolas nas votações anteriores, por ações
e intervenções da Advocacia Geral da União (AGU) do Instituto de
Colonização e Reforma Agrária (Incra) e da Fundação Cultural
Palmares (FCP) – neste momento de retomada do julgamento, vem
manifestar-se contra os quilombolas e favorável à
constitucionalidade da Adin 3239. Não é à toa que desde dezembro
do ano passado, as titulações e, da mesma forma, as declarações
de terras indígenas – estão paralisadas.
Em
terceiro lugar, porque o julgamento da ação coincide com mais três
ações envolvendo terras indígenas, em que se discute a aceitação
do parâmetro do marco temporal, ou seja, de que somente são
reconhecidos territórios em que as populações comprovem a presença
em 5 de outubro de 1988. Não é demais lembrar que a confirmação
de tal jurisprudência, também para quilombolas, é, não somente
uma violação a julgados da Corte Interamericana de Direitos
Humanos, mas também o privilégio da história escrita sobre a
história oral, das distintas formas de presença de territórios
(que não passam, necessariamente, pela visão eurocentrada da
judicialização) e a chancela do permanente esbulho de terras negras
e indígenas num país marcadamente racista, heterossexual e
sexista.
Boa
parte das lideranças quilombolas são mulheres, e esta
invisibilidade da frente estatal – e de todo o aparato judicial –
é mais uma forma de violência, exacerbando violências internas e
negociações estatais, ignorando dinâmicas próprias de poder
político, social, pluralismo jurídico, enfim, de formas de fazer,
viver e criar, que não passam pelas coordenadas clássicas do
direito brasileiro que se imagina estadunidense (desde que não tenha
que reconhecer o racismo) ou europeu ( desde que não tenha que
trabalhar a questão colonial).
Desta
forma, o Decreto 4887/2003 é a maior conquista em termos de marco
regulatório do direito quilombola. Na retomada da votação no STF
parece que os quilombolas terão a seu favor apenas a força de sua
mobilização e de suas parcerias para que se cumpra o que a Ministra
Rosa Weber retoma, a partir de Nancy Fraser, em seu voto: de que
reconhecimento e distribuição são dois vetores fundamentais da
justiça social na sociedade contemporânea.
É
por esse motivo que Makota Kidoiale fala do retorno das senzalas, na
epígrafe do início do texto. Só há um meio de mostrarmos a força
nessa luta: a união de todos quilombolas e parceiros para
mostrar que não aceitamos a retirada de direitos. Portanto, estamos
convocando todos para somarem: seja com ajuda com transporte para a
viagem a Brasília, seja com a divulgação desse julgamento (e com
formas de apoio, as mais diversas, incluindo vídeos, etc) e o que
ele representa, seja com a assinatura da Petição
que o Instituto Socioambiental leva à frente, bem como com todas
as formas mais criativas possíveis para barrarmos a onda
conservadora que ronda o Brasil.
Estas
formas criativas que têm sido o diferencial de resistências,
re-existências e insurgências em todas as lutas por nossa Améfrica,
como recordaria Lélia Gonzalez. Assim, com os braços juntos,
fortaleceremos essa corrente e mostraremos que, para os povos negros,
correntes de açoites e do tronco das senzalas, nunca mais!
Nos
tempos em que se discute “abolição da democracia” ou democracia
de baixa intensidade, é necessário voltar a Du Bois e Angela Davis,
para tratar de “democracia da abolição”, mostrando a
necessidade da abolição das novas formas de escravidão, das
prisões e da pena de morte. Como sustenta Davis, não se trata só –
e nem fundamentalmente – de uma abolição no sentido negativo, mas
sim no sentido de
“reconstrução, de criação de novas instituições”,
pois para a “abolição
completa das estruturas opressivas produzidas pela escravidão
deveriam ser criadas novas instituições democráticas”.
Justamente porque isso não se deu, é que “a
gente negra se encontrou com novas formas de escravidão”.
Não
se trata, pois, somente de discutir a questão da diversidade
cultural e social do país, nem de tratar de distintas formas de
utilização da terra, que não passam pela visão hegemônica da
propriedade privada. O STF está diante da necessidade de discutir –
mais que no julgamento das ações afirmativas – o permanente
racismo institucional e epistêmico que continua como estrutural e
estruturante nas visões de direitos humanos, mesmo das mais
progressistas.
Não
à toa, agosto é o mês da Revolta dos Alfaiates, da criação da
Fundação Cultural Palmares, do Primeiro Congresso de Cultura Negras
da Américas, da Conferência Mundial de Durban, da independência de
várias colônias europeias na África e do Dia Internacional da
Memória do Tráfico Negreiro (23 de agosto). Como salienta Cristiane
Sobral:
“Estamos
diante de nossos espelhos negros, olhando para nós mesmos,
enxergando as nossas memórias a nossa ancestralidade, sem medo da
nossa escuridão”,
pois
“se você se enxergar diante de um espelho negro, aprenderá a
conviver com as suas sombras, com suas luzes, alterando a sua
percepção. Isso influenciará decisivamente a sua existência”.
fonte cartacapital.com.br
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