Gênese do samba é tema do 1º livro de trilogia do jornalista Lira Neto
Gênese do samba é tema do 1º livro de trilogia do jornalista Lira Neto
Cultura
Estadão Conteúdo
Eles eram muitos Ismaéis, Sinhôs, Cartolas, Ciatas, Dongas, Pixinguinhas e Noéis.
Viviam por dias pestilentos e noites venéreas de um Rio de Janeiro em
transformação, descendentes próximos de escravos driblando meganhas que
os prendiam por vadiagem e porte de violão enquanto tentavam criar para
suas existências um papel que nunca esteve no
script. Eram pedreiros, carteiros, pintores, larápios, batedores de
carteira e cafetões prontos a se esquivarem da navalha de um marido
traído ou a sacarem do bolso caneta e papel que, um dia, os salvariam da
invisibilidade. Eles eram sambistas.
O samba não tem criador nem nasceu por decreto. Não há pedra em
residência que o batize nem pai que o reconheça em cartório. Veio por
ventos soprados da África em linha reta ou rebatidos dos recôncavos
baianos, entrelaçados sobre o Rio e respirados por uma gente que acabava
de atingir tal condição. Rio de Janeiro, década de 1910, Teatro Rio
Branco: “É um fedelho!”, disse um dos donos da casa, Cristóvão Auler, ao
ver o menino de calças curtas tremendo de pânico, segurando sua flauta à
espera de um teste de admissão. O fedelho era Pixinguinha. “Eu tinha
gonorreia, cancro duro, cancro mole, mula, cavalo, o diabo; gemia o dia
inteiro naquela cama”, lembrava Cartola anos depois de vagar pelas ruas
sem destino, subindo e descendo morro e dormindo em vagão
de trem depois
de ver a mãe morrer e ser expulso de casa pelo pai.
Antes mesmo que o samba fosse samba, já era assim. Criado no
ambiente pós-Abolição de 1888 e pré-modernização da Capital, fazendo a
única ponte possível entre a miséria dos barracos que começavam a ser
empilhados, a classe média e as elites que ouviam a Rádio Nacional de
Francisco Alves e Mário Reis, o samba, paradoxalmente ao cenário
indigesto de suas origens, não poderia surgir em momento melhor. “Era a
música certa no lugar certo”,
diz ao jornal “O Estado de S. Paulo” o jornalista e pesquisador Lira
Neto em seu apartamento em Perdizes, São Paulo. A saga que ele conta
está nas linhas e nas entrelinhas de Uma História do Samba – As Origens,
o primeiro livro de uma trilogia, lançado agora pela Companhia das
Letras, que dimensiona o gênero ao contar histórias de seus principais
personagens e, com elas, provocar a leitura paralela de uma era.
Ir atrás das verdades do samba pelas recorrências históricas seria
tão confiável quanto acreditar em um livro de memórias de Carlos
Imperial. Elas diriam a Lira Neto que Pelo Telefone foi o primeiro samba
gravado e que seu autor inconteste é Donga. Não iriam muito além do que
se sabe sobre os Oito Batutas, grupo de Donga, Pixinguinha, seu irmão
China e, mais tarde, João Pernambuco. E certamente trariam o tom
glorificador da genialidade de Sinhô sem especificar os sambas que ele
surrupiou sem dó nem piedade de Heitor dos Prazeres. “O problema é que
os jornais da época não cobriam os fatos enquanto eles aconteciam. Era
uma história invisível”, diz Lira. “Eu corria o risco então de chover no
molhado e aceitar a lacuna documental.” Sua saída foi um golpe de
mestre inspirado pelo faro jornalístico. Sem muitos jornais a recorrer,
sem testemunhas vivas e sem imagens da época, Lira percebeu que o mundo
do samba tinha como habitantes homens em constante estado de suspeitos,
réus e condenados por brigas, roubos, desavenças e, principalmente,
andar pelas ruas em situação de desocupados. A mesma polícia que os
prendeu salvou suas memórias. “Eu fui buscar as ocorrências nos arquivos
das pretorias do Rio, que estão sob a guarda do Arquivo Nacional.
Conseguia lá dados pessoais como nomes e filiação, além do fato que os
levaram a ser fichados.”
É então uma história contada também pelo viés policial, mas que
precisa ser lida com discernimento crítico. Os sambistas não eram
arruaceiros incorrigíveis, mas frutos da primeira geração que sentia na
pele e nas perseguições o limbo no qual a população negra
se encontrou nas décadas seguintes à libertação oficial dos escravos. A
vida não se tornaria imediatamente um sonho assim que as correntes
fossem retiradas. Os estratos estavam organizados de forma que não
incluía a ascensão racial. “A lei da vadiagem é contemporânea à Abolição
da Escravatura. Como fazer para que a população alforriada tivesse uma
ocupação e fosse absorvida pelas classes trabalhadoras?”, diz Lira. O
choque jogava alguns em situação de criminalidade, outros em situação de
sambistas e, muitos, nas duas situações.
O racismo também é irrefreável nas páginas dos jornais. O que
escrevem alguns críticos sobre os shows que Os Oito Batutas fazem pela
Argentina em 1922 é estarrecedor. O jornal Última Hora disse o seguinte
diante do grupo do pequeno Pixinguinha: “O novo número contratado pelo
empresário Cairo é um número de luto. Seus componentes são negros. E os
que não o são, são morenos carregados”. Ele compara os instrumentos
musicais a “buzina de automóvel e ralador de queijo”, e termina assim:
“Aos que gostam de coisas estranhas, recomendamos ir ao Empire. Nós,
francamente, teríamos preferido que houvesse menos negros, menos ruídos,
mais bailado e mais saias. Porque a vida já tem negruras demais”.
A passagem dos batutas pela Argentina seria inglória por outras
razões. Quebra de contrato com o empresário e mais gastos do que o
previsível levaram o grupo à beira do desespero, fazendo com que um de
seus integrantes, o violonista Josué de Barros, fosse para o tudo ou
nada na pequena Río Cuarto em busca de verba para voltar ao Brasil. Não se sabe que inspiração o levou a anunciar que seria enterrado vivo no
cemitério da região, cobrando uma taxa de quem quisesse vê-lo como
defunto, alojado sob muitos palmos abaixo da terra sem comer e sem beber
por 15 dias. Muito antes do prazo, a plateia perdeu o interesse e,
antes que o cadáver de mentira se tornasse real, Josué ressuscitou.
Sinhô não teve a mesma sorte. Ao morrer, aos 41 anos, estava
degenerado pela tuberculose e miserável pela injustiça. O homem chamado
de “o rei do samba” foi também, para o biógrafo, o primeiro a fazer
marketing com a própria imagem, massificando sua produção e controlando
suas obras para evitar as apropriações indevidas que ele mesmo cometia
com a obra alheia. Já o samba, ao contrário do que muitos pensaram à
beira de seu caixão, hoje em vala desconhecida, só estava dando seus
primeiros passos.
UMA HISTÓRIA DO SAMBA – AS ORIGENS
Autor: Lira Neto
Editora: Companhia das Letras (368 págs., R$ 64,90)
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Autor: Lira Neto
Editora: Companhia das Letras (368 págs., R$ 64,90)
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Fonte - Isto É
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