Minhas andanças com o projeto Midia dos Povos (relatos)
Software livre, resistência e saberes ancestrais em Alter do Chão

A diversidade era marcante entre entre os presentes: quilombolas do Quilombo do Curiaú, localizado em Macapá, no Amapá, – local onde ocorreu o primeiro encontro –
representantes indígenas das etnias Munduruku, Koukama, Miranha e
Kumaruara; comunicadores das comunidades ribeirinhas de Juruti Velho e
Mojuí dos Campos, no Pará; ativistas do coletivo Puraqué, de Santarém;
arte-educadores de Belém e um midiativista de São Luis, no Maranhão.
Software livres são programas abertos e
gratuitos. Além de garantir o acesso mais democrático dos programas, o
uso deste tipo de software garante que o usuário não precise pedir
qualquer permissão ou se comprometer com licenças proprietárias
restritivas. O projeto Mídia dos Povos acredita que estimular o uso
deste tipo de software junto às comunidades e projetos de mídia
alternativos, comunitários e livres, permite a maior liberdade e
autonomia aos mesmos.
Aline Freitas, programadora e ativista de
software livre de São Paulo e Nils Brock, midiativista e cooperante
internacional da AMARC Brasil, foram responsáveis por introduzir as
técnicas básicas de software livre, como aprender a instalar Ubuntu nos
computadores e brincar um pouco com a enigmáticas (pra muitos!)
linguagem da programação.
Todos
os dias, antes de iniciar as atividades, os participantes que dormiam
juntos em um redário, acordavam ainda de madrugada para ver o sol nascer
na Praia do Amor, uma ilha localizada em frente à praça central de
Alter do Chão. Depois de renovados em seu banho matinal no Tapajós,
seguiam para o café da manhã. Logo antes de iniciar a primeira oficina,
aproveitavam a presença de xamãs, pajés e sacerdotes de diferentes
etnias para realizar um ritual de abertura. Renovados e encorajados,
seguiam para as práticas.
A apresentação de cada
participante, feita através da escolha de um objeto para falar sobre si
mesmo tomou bastante tempo do primeiro dia, já que cada pessoa ali
presente trazia um universo de experiências, saberes e expectativas para
compartilhar com todos.
O
primeiro dia foi inteiramente dedicado a instalação do sistema Ubuntu
nos computadores dos participantes. Quem não havia levado computador,
pode fazer a experiência numa das máquinas do telecentro do Ponto de
Cultura Oca que abrigou o encontro. Muitos dos computadores estavam sem
uso devido a carência de manutenção. Diante disso, Tarcísio Silva,
professor e ativista do coletivo Puraqué, que é o produtor local do
encontro, propôs que durante as oficinas, abrissem os computadores para
aprender um pouco sobre a manutenção e limpeza básica dos mesmos. Ele
mostrou como esse procedimento podia ser feito com simplicidade: “com
uma chave de fenda e um pincel macio é possível salvar um computador”.
Esse também foi um exercício de metareciclagem, já que foram usadas
peças de outras máquinas que não poderiam ser recuperadas para consertar
alguns computadores. Ao final do encontro cinco computadores foram
restaurados e agora podem voltar a serem usados no espaço.
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O segundo dia foi
dedicado a troca de conhecimentos e saberes entre os participantes. Os
Grupos de Trabalho haviam sido decididos no dia anterior a partir de um
mapa mental elaborado durante as falas dos participantes:
GT1. Uso
de Saberes Ancestrais; Realidade Cultural Munduruku e Dança, História,
Pintura e Experiência de ser Xamã, Payun e/ou Babalossay/ com Azazel
Koukama, Jonas Duarte e Milson dos Santos;
GT 2. Metareciclagem e educomunicação; com Tarcísio Silva e Rayane do Coletivo Puraquê;
GT 3.
Mídia e Meios de Comunicação nas Comunidades; Ideias de como Trabalhar
Comunicação nas Comunidades e Ferramentas de Comunicação através do Hip
Hop/ com Rejane Souza e João Ataíde;
GT 4.
Experiências de Luta em Defesa das Comunidades; Experiência do Grupo de
Mulheres/ com Eduardo Henrique, Marunha Munduruku, Rayane
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Na manhã do terceiro dia, Milson dos Santos, ativista do movimento negro do Maranhão, apresentou a plataforma de autocartografia Lagbaye Lyika,
uma autocartografia tático ancestral, que permite o envio de denúncias
de situações de violência, mapeando áreas de riscos para alertar pessoas
e organizações sociais, principalmente de matriz africana. Para mostrar
seu funcionamento, Mil convidou o participante Josivan Souza, de
Jururti Velho, Pará, para inserir denúncias sobre os impactos ambientais
e violações de direitos provocados pela multinacional Alcoa ao explorar
bauxita e outros minérios na região de sua comunidade.

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A parte da manhã do
quinto dia foi dedicado à arte junto dos nossos arte-educadores de Belém
do Pará. Os participantes se dividiram em dois
grupos, uns
foram trabalhar com grafite junto com o grafiteiro Marcelo Silva, e
outros produziram um música na oficina oferecida por Augustinho Hijo.
Marcelo
já havia iniciado alguns desenhos nas paredes do espaço cultural e
deixou que os participantes finalizassem as obras. As portas dos
banheiros também foram grafitadas com lindas flores. E não apenas
computadores que foram reciclados. Além das paredes das salas de aula da
OCA, Marcelo grafitou uma kombi sucateada que estava “jogada” na
esquina do quarteirão da escola Oca. A grafitagem agradou a dona da
kombi que estava planejando joga-la no lixão. Ainda disse ao artista que
a levaria para a frente de sua casa.
Agostinho fez rápidas
explicações sobre notas musicais e como combiná-las com ritmos e poesia.
O desafio colocado por Agostinho aos participantes foi de,
coletivamente, tornar poesia os sentimentos, as emoções e o conhecimento
que estava sendo compartilhado durante todo o encontro.
O
trabalho foi desenvolvido em duas etapas: enquanto Agostinho acertava
alguns acordes, afinava a guitarra e ajustava os equipamentos, os
participantes conversaram sobre o que queriam transmitir. As palavras
chaves foram listadas: sabedoria ancestral, terra, clamor, rio, sangue,
indígenas, negros, mãe terra e mãe d´água, preservação, riquezas,
Amazônia, respeito, meio ambiente, vida. E foi assim que surgiu essa
linda composição (clique aqui pra cessar o vídeo)
Parana, Áwira, Tuyuka, ParanawatsuSe sou peixe, o que comerSe sou planta, o que beberEm qual rio vou nadar (bis)Se a terra clama e choraO rio sangra a toda horaVamos despertar (bis)# Do lago verde ao TapajósO Amazonas, corijósErês e cuiantãs (bis)Da ganância vem o homemDinheiro que não se comeJá dizia os anciõesO canto da mãe d´águaQue veste oxum, que veste YaraPela flora preservadaDas riquezas maltratadasDa pureza dessa águaRespeitem, aqui é nossa casa.
À
tarde foi o momento de retornar aos computadores na oficina sobre
segurança na internet, novamente com Aline. Ela alertou para a falta de
privacidade e a forma como grandes empresas como o Google e Facebook
lucram a partir do banco de dados das informações que fornecemos ao
usarmos seus serviços. Além de sermos constantemente rastreados também
somos bombardeados diariamente com a publicidade. Por isso, ela nos
forneceu uma lista de programas, softwares, e-mails e sites alternativos
que possibilitam o uso mais seguro dos serviços online. Um exemplo é o duckduckgo,
buscador alternativo ao google, que não registra as informações dos
usuários. O dia foi novamente encerrado ao pôr do sol do rio Tapajós.
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No último dia foi
realizada a dinâmica Alfabeto do Futuro, com a coordenadora pedagógica
Ligia Apel. Nessa dinâmica, todos repetem letras do alfabeto e a
expressão corporal enquanto a sonoridade extraída de cada letra se
associa a um valor diferente.
Antes de encerrar o encontro, Luiza Cilente, coordenadora do projeto,
aproveitou
para fazer uma retrospectiva do projeto que em agosto desse ano passou
pelo Quilombo do Curiaú, no Macapá. Propôs então uma chuva de ideias
para que os participantes pensassem em conjunto de que forma a rede de
comunicadores amazônicos formada a partir dos encontros poderia
funcionar. Foram propostas diversas. A mais curiosa propunha uma espécie
de escambo para garantir a sustentabilidade dos coletivos e comunidades
envolvidas. A ideia é simples: se determinado grupo ou coletivo tem
algum equipamento sobrando, por exemplo, pode trocar com outro grupo ou
coletivo que também tenha algo sobrando ou possa oferecer algum serviço
em troca. É o retorno à práticas ancestrais que podem ser atualizadas
por nós, construindo um novo sistema de convivência, onde pessoas,
ideias e conhecimentos possam circular livremente.
*Relato por Luiza Cilente e Ligia Apel
*Fotos: Luiza Cilente, Natalia Fernandes, Nils Brock e Rejane Soares.
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